99-Uma capicua com começo feliz!
No
passado dia 24 de março de 2018 foi inaugurado num dos mais emblemáticos
edifícios da nossa cidade capital, o Magistério Mutu ya Kevela, escola de formação de professores do ensino
primário.
A solução encontrada, é minha
opinião reveladora de clarividência por parte de quem decidiu o princípio de um
novo futuro que se revela auspicioso no domínio da educação no País.
Durante
os oito longos anos que demorou a reconstruir o edifício muito se especulou
sobre qual seria o seu futuro, e logo vozes bastantes em surdina iam dizendo
que iria acabar como património de uma universidade privada, um hotel de luxo,
um condomínio, enfim uma panóplia de conjeturas sobre um edifício que para além
da arquitetura impactante, foi lugar
onde muitos dos que foram figuras de referencia nestes quarenta anos de País,
por lá estudaram e onde fizeram cumplicidades que ainda hoje prevalecem.
Para o ano o Liceu de Luanda cumpre
a vetusta data de cem anos, pois foi a 22 de fevereiro de 1919, pela portaria
nº 51, o então governador-geral Filomeno da Camara Melo Cabral com a designação
de Monsenhor Manuel Alves da Cunha, seu primeiro reitor (o único que se manteve
na sua peanha antes e depois da independência no jardim fronteiro ao ex-Colégio
S. José de Cluny). Monsenhor Alves da Cunha era também conhecido por ser o
“Senhor Kuribeka”, pois era curiosamente membro da maçonaria!
A instalação do Liceu que teve como
aluno nº 1 Álvaro Galiano, funcionou desde 15 de setembro de 1919 na Rua da
Misericórdia, numa casa da Companhia de Ambaca, tendo-se transferido para a Av.
do Hospital em outubro desse ano, em edifício demolido para dar lugar ao prédio
onde hoje funciona o Ministério da Justiça.
Em 1924 o Liceu passa a chamar-se de
Liceu Nacional de Salvador Correia, equiparado aos liceus da então metrópole.
Em 1972 o liceu passa a servir de local de estágio de professores e até 1975
altera a denominação de Nacional para Liceu Normal.
O edifício era pequeno e logo foram
detetadas insuficiências que levaram a que se apresasse a construção de um
edifício que respondesse ao crescendo de numero de alunos, quer de filhos de
colonos, quer de famílias negras e mestiças que viram uma oportunidade de
poderem dar aos filhos uma formação, que lhes pudesse permitir ter um emprego
com alguma dignidade e futura na segregacionista sociedade colonial.
O arquiteto José Costa e Silva é o
autor de um projeto arrojado pois conseguiu compatibilizar o modelo de
português-suave, uma corrente da arquitetura portuguesa muito cara a
determinada fase do salazarismo, com o clima de Luanda. Não sou um adepto do
estilo, mas reconheço que é um modelo onde muitos arquitetos se deveriam rever
para evitar a perfeita “balbúrdia arquitetónica” que se transformou Luanda, que
em alguns aspetos parece uma Disneylandia para adultos!
O edifício é arrojado, com paredes
duplas para a circulação de ar, claustros onde se consegue evitar a inclemência
do sol alto da cidade e janelas com luz suficiente e protegidas da estia de
Luanda.
O Liceu Nacional de Salvador Correia
deu os dois primeiros presidentes do País, Agostinho Neto e José Eduardo dos
Santos e deu uma plêiade de gente que lutou pela libertação do País. Formou
gente de grande qualidade científica e intelectual e a maior parte dos poetas
angolanos saíram dos bancos do Liceu, tendo debutado no “Estudante”, órgão dos
alunos do Liceu Salvador Correia, sendo o 1º número de 1933.
Seria
fastidioso, e ao mesmo tempo indelicado pois poderia esquecer alguém, vir aqui
dizer os nomes de tantos que em Angola, em Portugal, nos EUA, no Brasil, em
Macau se tem notabilizado em várias áreas do conhecimento e da política. É
indisfarçável o orgulho de todos os milhares que passaram por este Liceu, que
continuou enquanto Mutu-Ya-Kevela, a fazer sair gente de grande qualidade que
ajudaram a construir uma Angola renovada e independente.
A degradação física do edifício e as
sucessivas deficiências pedagógica do Mutu-ya-Kevela retiraram algum brilho nos
últimos vinte anos, mas ei-lo que regressa para dar uma alegria coletiva aos do
Salvador Correia e aos do Mutu, e julgo que há uma unanimidade na celebração da
recuperação, e um aplauso pela sábia decisão de dignificar um espaço de eleição
com uma escola de formação de professores.
Esta decisão consegue esbater
definitivamente os fantasmas que havia em relação ao estatuto de escola de
formação de quadros do sistema colonial, como o surgir em contraponto uma
escola que pudesse criar “o homem novo” sucessivamente adiado da escola
pós-independência! O surgimento deste Magistério Mutu-Ya-Kevela vai seguramente
unir todos para que se comemorem os 100 anos de um tempo que é mais para
recordar, para acordar para um futuro que se deseja consequente e brilhante num
ciclo novo que começa.
Eu andei no Liceu desde o meu 1º ao
5º ano, tendo saído em 1972 e há milhentas histórias que me recordo e muitas
outras que me são recordados em inúmeros encontros que nos fomos habituando a
fazer em Portugal, em Luanda, no Brasil ou em Macau. É impressionante o
espírito solidário dos antigos alunos do Salvador Correia / Mutu-Ya-Kevela, e
os encontros são sempre um retorno a um tempo pueril e irresponsavelmente
sonhador.
Num momento em que se tornou um
hábito quotidiano defenestrar governantes, é justo realçar a decisão de se ter
recuperado fisicamente a escola, e simultaneamente aplaudir a ministra da
Educação, Maria de Cândida Teixeira pela decisão que tomou em relação ao futuro
do “nosso Liceu”!
Porque
muita gente ignora quem foi Mutu Ya Kevela convém destacar que foi um dos mais
notáveis membros da Corte do Bailundo, um herói de uma das nações ancestrais do
Centro de Angola e liderou uma revolta contra a presença portuguesa, tendo sido
derrotado em 1902, depois de ter conseguido reunir um conjunto de reinos da
região, e ao tempo ter disposto do maior numero de guerreiros.
Também por isto
uma boa homenagem!
Fernando Pereira
26/03/2018