Remendo!
Num tempo em que 29, 622 kwanzas
valiam um dólar, e outras mordomias como por exemplo partilharmos muito mais o
pouco que se tinha, havia que se ter engenho e arte para conseguirmos matar o
“tédio revolucionário”; bem mais tolerável que o “fastídio dos mercados”!
Numa
noite abafada de Fevereiro de há trinta e cinco anos fui com uns amigos ao
Kussunguila, um dancing na Ilha de Luanda, construída no tempo colonial junto a
um higienizado e apelativo mercado do artesanato. Formávamos dois casais e
entrámos numa sala enorme que estava praticamente às moscas. Os decibéis roufenhos
e alterados de uma música razoavelmente má, num espaço onde o ar condicionado
emitia um estridente e pautado som metálico enviando golfadas de ar quente,
para uma sala que já se tornara quase uma camara de tortura.
As mesas
eram para duas pessoas e apesar de as termos aproximado uma da outra só nos
conseguíamos entender aos berros. Veio solícito o empregado e perguntou: Que
desejam os camaradas? Pedimos cerveja, ao que ele adiantou que não havia
rigorosamente nada fresco, e que já teria informado a Emprotel UEE, ou a
Angotel UEE da avaria há uns tempos e ainda não se tinha diligenciado nada até
ao momento. Perguntámos que é que havia para beber, e ele muito lesto disse:
“Aguardente búlgara, Macieira e Havana Club”. Animados com a oferta disponível
resolvemos arriscar a Macieira, e sinceramente ainda hoje guardo o travo daquele
cognac de pacotilha que nos foi servido. Passou a ser urgente debandar e foi
isso que fizemos deixando o funcionário na sordidez pouco iluminada de um
dancing vazio. Saímos do Kussunguila e sinceramente jamais esqueci o bafo de
calor que tão bem me soube!
Mais ou
menos na mesma altura fiz uma viagem ao Lubango e entrei na que outrora tinha
sido uma pastelaria de eleição no tempo colonial, a Tirol, em pleno “Picadeiro”
, rua central da única cidade em toda a África que tinha mais brancos que
pretos. A pastelaria tinha três balcões envidraçados, num tinha alguns bolos de
aspeto manhoso, noutra uma mistura esquisita de velas e bolachas e numa outra
rebuçados, confeccionados numa fábrica local ainda em funcionamento ao tempo.
Naturalmente que quis comprar uns pacotes para trazer para Luanda, e pedi às
duas camaradas que estavam em cada um dos dois outros balcões envidraçadas para
me darem os rebuçados, e uma delas prontamente disse que não mos podia vender
porque o camarada responsável por aquele sector não estava. Perplexo, mas
resignado pela organização deste espaço quase vazio, mas cheio de gente e
regras.
No dia
seguinte, porque o voo para Luanda resolveu atrasar três dias, voltei e mais
uma vez não consegui ter acesso aos rebuçados, porque o camarada responsável
pelos “dropes, caramelos e correlativos” tinha-se ausentado nesse fim da tarde
em que lá estive. Não consegui levar rebuçados nenhuns, mas fiquei sempre com a
história para repetidamente contar.
Num
restaurante manhoso no Dondo sentei-me e pedi o prato do dia, a bem dizer não
havia alternativa, e lá veio o arroz maçudinho a acompanhar um espinhadíssimo
peixe frito do rio. A bebida era uma cerveja EKA morna, e quando chegou à mesa
o empregado resolveu utilizar os dentes para abrir a garrafa. Naturalmente
aborrecido disse que não iria tocar na garrafa o que o levou a abespinhar-se e
perguntar-me: “ O camarada tem nojo de mim?”; Repliquei que “sim, não tenho
nojo, mas acho que é pouco higiénico”. Ele indignado disse-me: “Sabe, eu devia
era ter aberto a garrafa lá dentro e o camarada bebia-a toda”. Apesar de
resignado e esperando que “desamparasse a loja”, o tipo resolveu encostar-se à
minha mesa e fazer uma teorização da luta de classes, do fim do colonialismo e
da implantação do socialismo científico, asseverando que eu enquanto angolano
branco não tinha ainda compreendido as mudanças. Farto de ouvir palavras de
ordem, agilizei a degustação do paupérrimo menu, paguei e saí para a rua onde
me esperava o ar abafado do desmazelado Dondo ainda com resquícios de tempos
áureos na sua decadente malha urbana.
Desculpem
a puerilidade do artigo, com histórias tão banais, mas na realidade no dia em
que comemoro os sessenta anos do meu nascimento na então Casa de Saúde de
Luanda, hoje maternidade Augusto Ngangula, muita coisa me ocorreu para
escrever, mas nada saía com a fluidez desejada. Fica o remendo!
Como
dizia Gabriel Garcia Marquez “A vida não é a que cada um viveu, mas a que
recorda e como recorda para conta-la”
Fernando Pereira
25/5/2016