21 de outubro de 2016

“Conde de Abranhos” nos trópicos / Ágora/ Novo Jornal / Luanda 21-10-2016




“Conde de Abranhos” nos trópicos
“Infalível, também, era o Doutor, aquele cavalheiro estimável, mas de aspeto lúgubre, que todos apenas conheciam por este nome: o Doutor.
Sempre vestido de preto, sempre de luvas, amarelo como uma cidra, persistia na sua mudez taciturna; porém, continuava a escutar com uma atenção intensa, a testa franzida, piscando vivamente os olhos, como num profundo trabalho cerebral.
Respeitador fervente das instituições, das personalidades oficiais, ninguém sabia ainda onde ele vivia, nem de que vivia: mas precipitava-se com tanta veneração (porque era homem de sociedade) a tomar as xícaras vazias das mãos das senhoras, dizia com tanta convicção, na sua voz cavernosa, «tem V. Exª carradas de razão»; que era geralmente considerado como um excelente moço.”
Este é só um delicioso detalhe, da farsa o “Conde de Abranhos” ,que o escritor português Eça de Queiroz (1845-1900) fez sobre a sociedade do seu tempo no período conturbado da 1ª experiencia constitucional portuguesa!
O “Conde de Abranhos” era a personagem típica do carreirismo, “carneirismo” e bajulice no seu pior, e infelizmente acontecendo em várias latitudes e na vivência quotidiana de sociedades que não passam de ter este “status”.
O Conde de Abranhos estudou na Universidade de Coimbra, onde começou por denunciar um colega, o que lhe permitiu passar a usufruir favores dos seus superiores. Simultaneamente envolve-se com a “criada”, que fica grávida e imediatamente abandonada, e o rapaz recém-nascido completamente esquecido. Vai para Lisboa, trabalho no escritório do causídico Vaz Correia, que o guinda a redator chefe do Jornal “Bandeira Nacional”.
Percorrendo os corredores do poder, casa-se com a filha do Desembargador Amado, Virgínia de seu nome, o que lhe assegura de imediato 10 mil cruzados de renda, e fundamentalmente abre-lhe as portas de S. Bento (Assembleia Nacional de Portugal). É eleito deputado por Freixo de Espada à Cinta, onde faz discursos, vazios de conteúdo, sobre a reforma das instituições, a política colonial e o caminho-de-ferro do leste. Como os tempos não corriam a favor da sua linha política, não faz disso um problema, e passa-se com armas e bagagens para oposição que em troca o coloca como um “cinzento” Ministro da Marinha, lugar que ocupa como “estátua” durante dois anos sem que alguém dê por ele.
Trouxe aqui o “Conde de Abranhos” porque ilustra o quotidiano do poder, dos títulos tantas vezes conseguidas à custa de coisa pouca ou coisa nenhuma, e da influência que certas criaturas tem nos corredores do mando sem que possuam qualquer tipo de competência, legitimidade académica e comprovada experiencia na gestão de qualquer coisa pública.
Fazem-se as cadeiras em função dos rabos de quem usa argumentos para se lá sentar, nem sempre os mais ortodoxos, e frequentemente a cadeira é feita para à medida de gente que se encostou a quem tenha força suficiente para os lá colocar. Temos que recuar ao império romano, que com toda a sua corrupção e nepotismo nas hierarquias do poder havia um cuidado muito especial para se escolherem os rabos dos cavalos que equipavam as quadrigas, por forma a não destabilizarem toda a carruagem nas lutas que se iam fazendo nos jogos, nas batalhas e no transporte de pessoas de elevada importância.
Acho que um exercício saudável seria o regresso aos clássicos, e já agora porque não voltarem-se a ler alguns vultos das letras que em português escreveram, e muito bem, e pegar num Eça de Queiroz, Olavo Bilac, Manuel Bandeira, Ramalho Ortigão, Guimarães Rosa, Camilo Castelo Branco, Fialho de Almeida, Mário de Andrade, Nelson Rodrigues (Recentemente o Elinga encenou “Mulher sem pecado”), Jorge de Sena, Aquilino e tantos outros para que reaprendamos a escrever, e ver que a frase de Marx do “Dezoito Brumário de Louis Bonaparte” (!852)A história repete-se, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa.” É de uma acuidade permanente no quotidiano vivível.
O “Conde de Abranhos” é uma farsa, e é também um vivendo para onde os angolanos vão sendo involuntariamente empurrados, fruto das realidades que se vem na mudança de cadeiras do governo central, e nos governos provinciais, o que deixa no ar que há poucas soluções para os rasgos da política económica e social que caminha de crise em crise sem solução à vista.
Aguardemos melhores dias!

Fernando Pereira
26/9/2016



14 de outubro de 2016

O lugar do morto - O Interior- Guarda 13/10/2016



O lugar do morto
As forças vivas da Guarda, e algumas que se julgam vivas e estão mais que moribundas vão-se entretendo com alguns jogos florais.
               Entre o bate e o abate de árvores, de manter ou fazer desaparecer “bucho” vou olhando com interesse para o edifício de Vasco Palmeirim (Regaleira), o Hotel Turismo, obra de tomo do Estado Novo, no âmbito de um conjunto de hotéis entregues à supervisão do arquiteto Raul Lino. A verdade é que há anos que encerrou as portas, depois de um período de morbidez de vários anos e sucessivos executivos da Camara Municipal da Guarda.
               Por estar no centro da cidade, a sua degradação vai-se evidenciando e fundamentalmente acentua-se a indefinição do que será o seu futuro! Aguardemos as cenas dos próximos episódios, e que promessas novas virão abrilhantar a pré-campanha eleitoral que já se começa a viver.
               Eu não vivo na Guarda, embora tenha no meu quotidiano a maioria da atividade social na cidade.
               Ocasionalmente tenho que ir a velórios, de pessoas que me merecem consideração, seus familiares próximos ou até meus familiares e confesso que é confrangedor como a cidade trata os seus mortos.
               Sei que os autarcas não gostam de gastar dinheiro com “mortos”, ou melhor enterrar dinheiro em obras que tenham a ver com gente que tenha falecido. A síndroma “Odorico Paraguaçu” da novela brasileira “O Bem-amado” do dealbar dos anos 70 no Brasil, e que foi um êxito em meados dos anos 80 na TV portuguesa, ainda se vai mantendo no subconsciente dos autarcas, e recusam ao máximo alterar o que quer que seja que tenha a ver com mortos. Para os que não conhecem a história, ela decorre em Sucupira cidade do nordeste brasileiro onde Odorico, um perfeito venal, corrupto e demagogo decide como obra grande do seu mandato a construção de um cemitério na cidade, com o argumento que os mortos deixassem de ser sepultados numa cidade vizinha. A excelente telenovela tem o seu enfoque na ausência de mortos para o cemitério, que se terá revelado um “elefante branco”, naturalmente aproveitado pela oposição. Odorico tenta tudo mas ninguém morre, e não consegue inaugurar o cemitério, e contrata um “cangaceiro” para arranjar uma vítima. O homem, que se queria regenerar acaba por assassinar o perfeito, que vê o cemitério inaugurado pela oposição graças ao seu próprio cadáver.
               A Guarda devia ter um local com alguma dignidade para que amigos, familiares e conhecidos de alguém que morra, lhe possa fazer um velório com a dignidade que qualquer pessoa merece no momento da despedida.
               Os amortalhados vão para um anexo da Igreja da Misericórdia, onde ficam numa sala exígua, mal iluminada, fria, sem apoio de sanitários decentes num lugar com uma entrada quase clandestina, que dá para uma rua onde o vento no inverno nos “embala e abraça”!
               A Guarda merecia um local condigno, ventilado no Verão, aquecido no Inverno, com algum apoio (águas, cafés, por exemplo) e onde as pessoas pudessem confortar os familiares do defunto no féretro.
 Outro detalhe não negligenciável tem a ver com a falta de um local de recolhimento a defuntos que não professem a religião católica, e que não conseguem ver salvaguardados os seus direitos de cidadania na hora do seu passamento.
Acho que a Guarda mereceria a construção, ou mesmo adaptação de um centro funerário que dignificasse a cidade, e não o espaço onde se fazem quase todos os velórios das Ex freguesias da Sé e S. Vicente.
Acho que era um bom motivo de reflexão e debate com caracter de urgência!

Fernando Pereira

9/10/2016

8 de outubro de 2016

Cantilena do povo

Fui encontrar um dos artigos que escrevi com o pseudónimo de "Vila Cândida" no Correia da Semana nº3 de 30 de Janeiro de 1993. Já nem me lembrava dos meus tempos de "Pena de Ouro" do jornalismo angolano,eheheh!!!





Artigo no "Jornal de Angola" de 17 de Setembro de 1994

Hoje andei a arrumar umas tralhas e fui descobrir um artigo que escrevi para o "Jornal de Angola", onde colaborei uns anos. Este artigo saiu precisamente no dia 17 de Setembro de 1994.
Engraçado como as coisas naquele tempo já aconteciam!!!




7 de outubro de 2016

REQUIEM / Ágora/ Novo Jornal / Luanda 7-10-2016








REQUIEM


Já começo a estar num patamar da vida em que há cada vez menos coisas que me surpreendam!
A semana passada “perplexei-me” com a leitura do livro de Rita Garcia, “Luanda como ela era 1960-1975”. Desde os tempos da Agencia Geral do Ultramar, ou da componente local CITA  (Centro de Informação e Turismo de Angola), que não conseguia ver um trabalho com tantos encómios a uma cidade pintada de branco. Foi o retorno ao “lava mais branco” onde a cidade branca era o paraíso e onde os não-brancos eram apenas criados, músicos ou meros figurantes.
               O livro em termos gráficos é interessante, as fotografias estão bem enquadradas, tudo o resto é um cantar loas a um modelo de sociedade em fim de festa, e que curiosamente poucos se davam conta disso! Se tivesse que fazer um comentário ao livro nos meus tempos do Liceu Salvador Correia, diria que era um “livro da sanguitada”. Hoje estou mais brando na verve, e não teria feito este artigo se hoje não tivesse lido uma entrevista da Rita Garcia à “Notícias Magazine” cheias de lugares comuns, como no livro, mas referindo-se aos anos da guerra, em Luanda, como "os doces anos em que o espaço não tinha fim e os dias morriam devagar num paraíso tropical". 
               A convicção com que fiquei, e note-se que li outros dois trabalhos da autora, foi que a jornalista Rita Garcia não terá feito uma avaliação cuidada quando resolveu fazer este livro, e provavelmente limitou-se a ouvir quem viveu Luanda a olhar sempre só para o mar.
               “ Luanda como ela era 1960-1975” é o livro que o saudosista puro e duro poderá oferecer aos seus filhos e netos no Natal, depois de pouco mais de quarenta anos a reduzir Luanda à cidade do asfalto, e a esquecer as prisões arbitrárias nos musseques, a segregação nos espaços públicos e o limitado acesso dos negros ao ensino, entre outras coisas que aviltavam a maioria dos naturais da Luanda pintada de cor-de-rosa esbranquiçado.
               As excelentes fotos que vão correndo ao longo do livro não deixam dúvidas sobre a Luanda até 1975: Uma cidade construída para brancos viverem, divertirem-se, trabalharem e esquecerem o dramatismo do que foram tempos coloniais, onde o estatuto do indigenato e o cartão de residência iam segurando um grupo de gente que “merecia o seu bocado de pão”, como dizia o poema do angolano Agostinho Neto.
               As comunidades brancas e negras viviam de costas voltadas. No Liceu Salvador Correia, o mais emblemático do território, a percentagem de negros e mestiços era ridícula comparada com os estudantes brancos. Posso dizer, eu que o frequentei durante cinco anos, que nunca fui a casa de nenhum colega negro, apesar de termos uma relação normalíssima nos bancos da escola. E esta era apenas um dos exemplos do distanciamento na sociedade luandense, que não se cingia ao Clube Naval, Nun’Álvares, Clube dos Caçadores, Barracuda, Mussulo, Dongo, S. Jorge, Restinga, Tamar, Contencioso e outros lugares onde nos esquecíamos de tudo o que se passava nos “bairros da terra vermelha”.
               Carlos Matos Gomes, militar reformado, autor de um conjunto de obras obrigatórias para o estudo da guerra colonial diz: “Luanda pode ter sido inesquecível para muitos e por muitos motivos, mas era caótica, ofensivamente desigual em todos os aspetos, do social à urbanização esse é um facto e a prova de que, tal como Rio de Janeiro, os seus autores tinham conseguido estragar o lhe era natural.” Infelizmente em Luanda todos os trabalhos duros e mal pagos eram para os colonizados e isso fica registado para a história e os seus combates no futuro.
               Simultaneamente ao lançamento deste livro, de que prefiro não perder muito mais tempo, estreou em Lisboa o filme “Cartas da Guerra” de Ivo Ferreira baseado nos “aerogramas” de António Lobo Antunes para a sua mulher durante os dois anos e meio em que fez a guerra colonial em Angola. Ainda não vi o filme, mas li o livro e aqui no NJ fiz ao tempo (25-3-2011) a crónica onde acompanhei as observações escritas pelo então alferes Lobo Antunes sobre a “cidade inesquecível”.
               Cá vai: “Escrevo-te num domingo insuportável de calor, numa esplanada diante da baía...Que cidade horrível. É como passar um domingo em Benfica na esplanada Estrela Brilhante, com o chão cheio de tremoços e de detritos. Uns negros aleijados, arrastam-se a pedir esmolas, outros oferecem-me cinzeiros de madeira, objectos esculpidos, jornais, farrapos e miséria. Nunca pensei vir encontrar tanta pobreza, tanta porcaria, tanto calor. Uns sujeitos sebentos, de pasta, trocam escudos por angolares, com 12% a mais. Mas é tudo caro, tórrido e feio.
...Ontem um amigo daquele outro médico afinal conhecido, levou-nos a visitar a ilha, uma espécie de promontório com praias de um e outro lado, casas, um clube de golfe. Uma espécie de Rodésia vista por um mestre-de-obras de Tomar.
...Luanda está longe de ser uma cidade vivível: toda ela é uma espécie de Areeiro de província, com o mesmo pretensioso gosto suburbano, e os brancos daqui têm todo o mesmo indefinível aspecto dos vendedores de automóveis daí, de patilhas sem classificação social, camisas transparentes, e mulheres tipo locutoras de rádio, demasiado bem vestidas para serem inteiramente honestas. Os musseques são uma espécie de bairro da Boavista ampliado, em que os moradores fossem todos jogadores do Benfica. Só a terra é que é vermelha, como a areia dos estádios, e as noites cheias de murmúrios de insectos e de folhas, mergulhadas num mormanço de suor.
O que irrita é ver as revistas angolanas, de Luanda, cheias de fotografias de bailes e de festas e de eleições de misses, enquanto nós, que nada temos com eles, que pertencemos ao puto, como eles dizem com desprezo, estamos aqui a pôr os testículos no lume por eles. Não pormenorizo muito isto porque, mas os brancos locais, sobretudo os das cidades, são de um tipo de novo-riquismo saloio e soberbo, verdadeiramente insuportável. Luanda é horrível de mau gosto, uma terra onde eu nunca quereria viver, feia pretensiosa, sem categoria de espécie alguma. Sente-se o dinheiro por todo o lado, principalmente nos automóveis americanos, porque a maneira de vestir destes tipos é absolutamente execrável. Não merecem a terra extraordinária em que vivem, e, julgo, não a sabem, sequer, apreciar. Não há em Luanda absolutamente nada que preste: as poucas estátuas que tem, ultrapassam em mau gosto tudo o que se possa suportar, os edifícios são todos no género daquele em que mora o Souto, e que para mim representa o paradigma da fealdade. É uma excrecência absurda e estúpida. E estes tipos aqui acham Luanda um paraíso, uma espécie de Rodésia em melhor. Não nos agradecem o nosso sacrifício por eles, e, no fundo, tratam-nos com uma condescendência desdenhosa de brasileiros ricos. Que diferença de Lisboa. Não se pode viver numa cidade sem passado. Estes tipos são bem os descendentes dos degredados e está tudo dito.”
               Duas visões, e eu que nasci e cresci em Luanda não me revejo em nada com a da Rita Garcia, e pontualmente estou de acordo com a azia que impregna as cartas de Lobo Antunes.

Fernando Pereira

3/10/2016



Recebi este comentário do Leonel Cosme, e por ser extenso não o posso colocar no local dos comentários.Coloco-o aqui pela relevância que tem! Publicado no Artes e Letras!

ANGOLA nas memórias das guerras modernas
Há anos que deixei de ler livros sobre a chamada Guerra Colonial – que, conforme os tempos e as circunstâncias, também foi chamada Guerra do Ultramar e Guerra de Libertação. O último que ainda me mereceu um relance de olhos foi um trabalho da jornalista Rita Garcia, S.O.S.Angola – Os dias da ponte aérea, editado em 2011, do qual guardei uma impressão positiva, não obstante o facto de a autora, nascida em 1979 e em Lisboa, não ter feito parte directa da saga dos retornados. Baseando-se naturalmente em memórias alheias e escritos sobre aquele evento ocorrido em 1974-1975, considero que, literariamente, produziu um trabalho respeitável. Depois, escreveu mais dois livros, cuja publicação só vi noticiada, sobre “os que vieram de África” e “Luanda como ela era-1960-1975”, este sendo recentemente objecto de reparos num conceituado semanário de Luanda, Novo Jornal, em recensão de um seu reputado colunista, nascido e criado em Angola, Fernando Pereira.
Pese embora alguma reserva, logo pensei: terá a autora, desta vez, seguido a tentação do sapateiro que foi além da chinela? Se assim foi, terá navegado naquela nau aventureira do mau jornalismo que, pela irresistível tentação do sensacionalismo, não acrescenta nada de novo, repetindo o que está visto e sabido.
Concedo que é comum acreditar nas palavras e memórias de quem não temos razão para duvidar. E que se aceite como válida – como teorizou um comentador do último livro de António Lobo Antunes – (…) “a palavra que se deseja longeva, ou seja, a sobrevivência da literatura à passagem do tempo, às brancas que a memória possa ter no espetáculo da vida.” Só que, tratando-se de literatura escrita em papel (digitalizada é outra coisa, como sabemos), toda a prudência será pouca se pensarmos que com documentos, bons ou maus, se faz história. Donde, em princípio, a prudência aconselha que o testemunho de quem passou por Angola (por África, melhor dizendo), nela viveu e, pressionado pelas vicissitudes da dita Guerra Colonial, teve de fugir deixando tudo quanto exprimia o seu sentido de pátria (original ou adquirida) – ubi bene, ibi pátria diziam os latinos – seja tomado como a “sua” memória e não como a memória de “todos”.
Neste pressuposto, decidi avocar o testemunho do consagrado escritor António Lobo Antunes, transcrito naquele citado artigo de Fernando Pereira – significativamente intitulado “Requiem” – que nas Cartas da Guerra dirigidas à esposa verte a sua diatribe por Luanda (e Angola por envolvência) de oficial–médico do exército português compelido para a Guerra do Ultramar. Respigo:
“O que irrita é ver as revistas angolanas, de Luanda, cheias de fotografias de bailes e de festas e de eleições de misses, enquanto nós, que nada temos com eles, que pertencemos ao puto, como eles dizem com desprezo, estamos aqui a pôr os testículos no lume por eles. Não pormenorizo muito isto, mas os brancos locais, sobretudo os das cidades, são de um tipo de novo-riquismo saloio e soberbo, verdadeiramente insuportável. Luanda é horrível de mau gosto, uma terra onde eu nunca quereria viver, feia, pretensiosa, sem categoria de espécie alguma. Sente-se o dinheiro por todo o lado, principalmente nos automóveis americanos, porque a maneira de vestir destes tipos é execrável. Não merecem a terra extraordinária em que vivem, e, julgo, não a sabem, sequer, apreciar. (…) Não nos agradecem o nosso sacrifício e, no fundo, tratam-nos com uma condescendência de brasileiros ricos. Que diferença de Lisboa. Não se pode viver sem passado. Estes tipos são bem os descendentes dos degredados e está tudo dito.”
 Em minha opinião, nada desculpa tão errónea visão da capital angolana e seus moradores obviamente brancos e da classe economicamente privilegiada, manifestada logo na maneira de vestir e na posse de automóveis americanos... Enfim, ”gente que vive sem passado, quais descendentes dos degredados”.
 Tolere-se que o militar compelido, por alegado dever patriótico, a fazer e sofrer, no mato, durante dois anos, uma guerra com que não concorda, acumule tensões psicológicas que distorcem até a visão da realidade e o sentido das coisas. Mas não menos sofrido será o colono culturalmente impreparado para compreender e aceitar os ventos de mudança que lhe arrasaram uma vida conseguida à custa de muito trabalho, renúncias, sacrifícios e, não raro, lágrimas. Para este, a Guerra é só uma, a despeito dos rótulos, quer seja o de Ultramar, Colonial ou de Libertação, conforme respeite ao regime de Portugal, ao critério da ONU e à luta dos povos colonizados.
   Pois essa vida de “portugueses-outros”, que não poderá ter começado sequer com a última geração dos “lançados” ou “degredados” em África (já o tinham sido no Brasil, igualmente ao que acontecera, ainda no século XIX, com os ingleses, franceses, holandeses, espanhóis e outros, expatriados para as colónias da América, África e Oceania), não se confundem sequer com os “portugueses-novos” que  arribaram a Luanda, de fato e gravata, vindos directamente da Metrópole, ostentando  a sua classe montados em automóveis americanos… O comum dos brancos naturais ou há muito residentes era  uma vida frugal, casa alugada ou, se própria, geralmente paga em prestações através de  cooperativas de habitação ou de crédito bancário. Não conheciam a palavra aforro… Com o que lhes “sobrava” de um salário geralmente mediano podiam, quando muito, comprar um carro utilitário também a prestações.   
A meio da década de 50 começara o “boom” do café e das explorações mineiras (os diamantes, o marfim, a cera e o couro já vinham de trás) e, geridos em Lisboa, os primeiros negócios da exploração do petróleo, logo a seguir impulsionados pela “abertura” do Regime aos Planos de Fomento e à implantação da Banca privada. A última Guerra do Ultramar tinha começado em 1961 e os novos descobridores de oportunidades aproveitaram as marés para lançarem as suas naus… Então a população de Luanda explodiu em número, qualidades e defeitos, originando os ricos-novos de várias cores, fazendo jus ao provérbio quimbundo: Mu Luuanda, mu uauaba: mu izê mukûku, ubiluka ndua. (Luanda é boa: não vem cuco que não se transforme em andua).     
Vale registar, para quem não saiba ou se esqueceu, que na capital angolana – segundo o investigador Francisco Lopes Roseira -, em 1832, dos seus 5.059 habitantes  966 eram elementos das instituições religiosas, militares do Destacamento de Portugal e funcionários públicos em comissão de serviço. Os desterrados por delito comum estavam distribuídos por presídios criados em várias regiões, de Norte a Sul, devendo-se a eles, em muitos casos, as primeiras pedras do edifício colonial.
Mas não se confunda com generalizações. A colonização de Moçâmedes foi iniciada, em 1849-50, por portugueses sem mácula criminal fugidos de Pernambuco às pressões da Revolta Praieira, e a colonização da Huíla, em 1884-85, por gente simples da Madeira. A “pior canalha do Reino”, como lhe chamou o Governador Paiva Couceiro em 1910, estava fixada sobretudo nos principais centros populacionais, como Luanda e Benguela, em Depósitos Penais, criados em 1883. E não se confunda também quem foram os desterrados do Brasil, implicados na Inconfidência Mineira, em 1789, como o naturalista José Álvares Maciel, o poeta Inácio José de Alvarenga Peixoto, o coronel Domingos de Abreu Vieira, o tenente-coronel Luís Vaz de Toledo e o sargento-mor Francisco António de Oliveira Lopes.
 Ainda mais inconfundível: já no começo do século XX, foram desterrados, em 1927, os dissidentes do 3 de Fevereiro no Porto e do 7 de Fevereiro  em Lisboa: Henrique Galvão, Camilo de Oliveira, Luciano Augusto Dias, Gervásio Campos de Carvalho, Agatão Lança e Manuel Marques Teixeira – alguns revertidos, mais tarde, em governadores.
Sendo também jornalista, não falo de outiva: cheguei a Angola em 1950, onde vivi até finais de Outubro de 1975, quando a invasão do Sul de Angola pelas tropas sul-africanas e o conluio com a UNITA, a FNLA e o ELP me obrigaram e à minha famíliia, in limine, a regressar a Portugal, com recurso à ponte aérea. Voltei a Angola para cumprir um contrato de trabalho entre 1982-87. Em 2005, fiz a última visita a Luanda. Foi neste período que vi as velhas casas de sobrado substituídas por inimagináveis arranha-céus; muitos moradores que tinham trocado o calção de caqui e a camisa sem mangas por fatos de casaco e gravata; outros moradores que chegavam, nos períodos de descanso, outrora a pé ou saídos do machimbombo, à livraria Lello para comprar ou conhecer as últimas novidades literárias (permitidas ou proibidas) ou ao vizinho café Biker para cavaquear (já conspirando…) em torno de um copo de cerveja, agora impedidos pelo trânsito infernal dominado por vistosos carros, importados de todo o mundo, rumo ninguém imaginava a quê. O tempora! o mores!
  Enfim, seja por resgate, catarse ou moenda que se continuam a escrever livros dizendo o mesmo (às vezes deliberadas mentiras ou falsidades) sem acrescentar nada de novo ao que se conhece, manterei o propósito de não ler mais livros com estórias de vida de regressados, civis ou militares, ao único país onde não serão estrangeiros.
                                                                                               LEONEL COSME
  P.S. Em consideração do espaço, faltou dizer que, só com a segunda chegada de Diogo Cão, em 1484, a Angola, foi estabelecido um curto período de verdadeira “colonização missionária”, usando a expressão de Adriano Moreira.


Related Posts with Thumbnails