30 de abril de 2015

Resumidamente / Ágora / Novo Jornal / Luanda 30-4-2015






"Está bem, sou velho, mas a minha imaturidade faz de mim um jovem".(Woody Allen)
Quarenta anos depois da independência do País, é tempo mais que suficiente para começarmos a desmistificar alguns acontecimentos dos tempos da “luta de libertação”, e do percurso da maioria de muitos dos protagonistas.
Não nos limitemos aos períodos conturbados dos anos sessenta e início dos anos setenta, mas também aos tempos do dealbar da independência.
Temos que acabar com o velho preceito estalinista de reescrever a história recente em função de que tipo de mensagem é adequado às circunstâncias políticas presentes. Isso é um processo sórdido e devemos exigir que não o seja feito, para que no futuro não se ande a construir uma história sem rigor científico. Despretende-se uma adaptação angolana de “O materialismo dialéctico e o materialismo histórico”, uma obra menor de qualquer marxismo de pacotilha.
Há um crescente número de factos empolados que nada tem a ver com tudo o que se passou, nem tampouco se revê nos intervenientes diretos, e o que vamos assistindo é a diabolização de uns quantos para a sacralização de outros, perfeitamente dispensável quando cada vez mais se exige lucidez e objetividade no conhecimento da história e verdade no protagonismo de certa gente.
As histórias têm que passar a fluir e não ficarem circunscritas às tertúlias, ou às almoçaradas de sábado em que por vezes chegamos à triste conclusão que “nada foi como nos contaram”.
Do maquis há milhentas histórias que só se contam em surdina, e algumas delas acabam por revelar que num passado distante houve histórias pouco dignificantes, que se repetem atualmente no quotidiano do País.
A título de exemplo, esta que me foi contada por um ex-guerrilheiro já falecido com protagonistas que naturalmente omito. Nos anos sessenta em Ponta Negra eram desembarcados fardamentos e botas para equipar os guerrilheiros do MPLA; Ficaram conhecidas pelas botas de borracha “saltitona” , já que entre o armazém de carga e o local de descarga em Dolisie muitos pares de botas desapareciam, encontrando-as à venda nos mercados da RPC e até no então Zaire. A verdade é que havia um esquema, montado com muita perícia por parte de alguns “maquisards”, muito rendoso e com cobertura superior, que aceitava justificações pueris que “as botas deviam-se ter perdido por causa dos inúmeros buracos na estrada do percurso” .
O ridículo sistema de entrega de armas e munições no leste de Angola aos guerrilheiros assume contornos de anedotário. As armas eram entregues a um grupo de combatentes, mas as munições para as armas só podiam ser levantadas noutro local, por vezes distante quase oitenta quilómetros. Obrigava o grupo, embora pequeno, a ter que se deslocar a pé, com o armamento, mal alimentado e acossado pelas tropas coloniais para irem buscar algo que era indispensável para a sua sobrevivência. Acontecia muitas vezes chegarem ao local e já não haver balas ou para cumulo as armas não estarem em condições quando tentavam testá-las. E a arma mesmo danificada tinha que ser devolvida no local onde lhe tinha sido entregue. Enfim!
Cada protagonista devia deixar as memórias, as boas e as más para que o futuro possa aquilatar com precisão, quanto foi o sacrifício de muitos a quem os angolanos agradecem e os oportunistas que devemos colocar no seu devido lugar: O “caixote do lixo” da história!
Vem a talhe de foice este artigo no dia em que sai em Lisboa mais um livro do Adolfo Maria, um octogenário que se mantém fiel aos princípios da angolanidade, empenhado como há sessenta anos, quando resolveu sem hesitações abandonar o conforto da sua situação de branco privilegiado num sistema colonial, para se embrenhar na luta com a sua companheira Helena Maria, uma portuguesa de Chaves que abraçou a opção do seu marido com grande perseverança e militância.
Adolfo Maria, no livro “ Angola Contributos À Reflexão” presta uma homenagem a muitos que com ele trilharam um percurso de luta pela independência de Angola, e que foram muitas vezes vítimas do oportunismo e cobardia soez por parte de uns quantos, que só punham os pés quando sentiam que as pedras colocadas por outros estavam em condições de ultrapassar um rio.
Este livro é mais um contributo para a história do País e Adolfo Maria não escolheu as palavras, nem adequou datas e acontecimentos ao circunstancialismo da “estória de Angola”.
Era desejável que este deixasse de ser um dos poucos exemplos de quem vai deixar memórias, e nesta fase era de todo desejável que os “mais velhos” escrevessem e que alguns arquivos reaparecessem, para acabar com “mujimbos” sobre posicionamentos políticos dúbios em determinadas circunstancias num longo processo de luta armada de libertação nacional.
Recomendo a leitura deste livro editado pela Colibri, para que se vá alicerçando a discussão no futuro sobre um passado que as gerações mais novas têm que se dar conta que existiu mesmo e não foi nada brando!

Fernando Pereira
28/4/2015

24 de abril de 2015

O 25 de Abril de 1974 também está a passar por aqui./ Ágora / Novo Jornal / Luanda 24-4-2014





José Gomes Ferreira, um dos poetas militantes que muito admiro, escrevia em Outubro de 1985: Momento sinistro de pensamento mutilado. Como é possível viver numa pátria assim! – de livros proibidos, de jornais proibidos, de peças proibidas, de homens proibidos – em que só silêncio é justo?

As revoluções não surgem por decreto. O 25 de Abril de 1974 é o corolário lógico do fim das indecisões que o fascismo de Salazar e sem Salazar tinham alimentado de forma doentia e sem qualquer tipo de solução. O 25 de Abril é o corolário lógico da fraude eleitoral de 1958, do Santa Maria, do 4 de Fevereiro de 1961, da queda de Goa, Damão e Diu, da Abrilada e do início e recrudescimento da luta armada em três palcos de guerra.
Em Portugal, a ebulição surge de forma reforçada na luta pelo horário de trabalho por parte dos trabalhadores rurais, nas greves nas fábricas e empresas por melhores direitos entre salários e proteção social, nas greves académicas de 1962 e 1969, na crescente fuga de gente para a Europa e no isolamento crescente de Portugal na cena política mundial. O 25 de Abril de 1974 é uma data que devolve aos cidadãos portugueses e aos povos sob dominação colonial uma nova identidade e uma nova dignidade.
Não foi feito por aventureiros, como se insinua recorrentemente, mas sim por aqueles que esperaram e desesperaram por uma solução tardia para os problemas que se arrastavam para um pântano de consequências perversas. Hoje, quarenta e um anos depois, podemos dizer que valeu a pena, e que podemos dar aos nossos filhos um mundo melhor, de liberdade, de participação cívica e de perspectivas de futuro assentes na melhoria da qualidade de vida de todos os cidadãos.
Podemos dar as voltas que quisermos, pessoalizar as razões para se afirmar o contrário, mas, de facto, foi a esses muitos homens fardados, que imediatamente tiveram uma adesão popular extraordinária, que ficámos a dever liberdades fundamentais, sem as quais não conseguiríamos respirar. Como em todas as revoluções ou processos políticos, há avanços e recuos, há situações mais ou menos obscuras, há aproveitamentos dos oportunismos que campeiam em qualquer sistema político, mas temos de ter em conta que Abril valeu a pena. Por tudo.
Para quem andava distraído, antes do 25 de Abril, lembro as "sábias palavras" do então mais alto magistrado da Nação Américo Tomás, vulgo “cabeça de Tarro”, que nessa altura era o Chefe de Estado do Minho a Timor.
"Memórias de Tomás" :"Eu por mim próprio, não me decidi a escrever as «Minhas Memórias». Decidiram-me. É que, estando quase toda a gente, ex-chefes de gabinete, ex-subsecretários de Estado, ex-secretários de Estado, ex-ministros, ex-chefes de Governo, escrevendo as suas memórias, a minha família começou a insistir comigo para que escrevesse as minhas «Memórias», na medida em que, disseram-me, mal me ficaria não escrever, também eu próprio, as minhas «Memórias». Habituado a falar e não a escrever, contando, segundo as minhas contas, nove mil trezentos e sessenta e quatro alocuções por sobre o território nacional, isto é, continente, ilhas adjacentes e províncias ultramarinas, não minto, nove mil trezentos e sessenta e cinco alocuções por sobre o território nacional e internacional, ligadas ao meu cargo de Presidente da República, - eu nunca me afeitei a usar a caneta, coisa que disse repetidamente a minha família. Não tive sucesso, como é obvio, dado que me compraram uma caneta e ma deixaram fechada na mão. Foi então que, pegando na caneta, carreguei no botão do gravador e comecei: "Senhor bispo da diocese, senhor ministro das Obras Públicas, senhor governador civil, senhor presidente da câmara municipal, senhor presidente da junta de freguesia, minhas senhoras e meus senhores" [in, revista Opção, Ano II, nº 30]"É esta, portanto, a ultima cerimónia que se passa na cidade da Guarda e eu não quero deixar passar esta oportunidade sem agradecer ao bom povo desta terra o seu entusiasmo, o carinho com que recebeu o Chefe do Estado. A chuva não teve qualquer influência no entusiasmo das populações. Elas vivem numa terra de granito, e a chuva não as apoquenta " A Guarda é um distrito de bons portugueses, de portugueses de uma só face, portugueses, portanto, sempre prontos a defender a terra que os viu nascer. E a Guarda tem uma particularidade: é a cidade mais alta da Metrópole" [ibidem, discurso na Guarda, in Século]" É uma terra [Manteigas] bem interessante, porque estando numa cova, está a mais de 700 metros de altitude. Pois o que desejo, sr. Presidente, para poder pagar, de qualquer forma a dívida que contraí, é que esta gente tenha um futuro feliz, abençoado por Deus. Que assim seja, para contentamento vosso e para contentamento meu " [ibidem, em Manteigas, segundo O Século, 1/6/1964]
Por acaso sabíamos que, quando se deu o 25 de Abril de 1974, Portugal tinha 32% de analfabetos, mais 47% que apenas sabia assinar o nome? Angola tinha 82% de analfabetos ? E que Cabo Verde tinha 26% de analfabetos devido ao facto de ter sido o segundo território africano a ter ensino secundário? Sabíamos, em Angola, que em Maio de 1968 houve uma "revolução em Paris", liderada por estudantes, e que alterou a configuração das referências das mentalidades da Europa? Sabíamos que em 1968 só houve duas sessões do filme "Crime da aldeia velha" no cinema Restauração, porque o texto de Bernardo Santareno ilustrava o último auto-de-fé em Portugal numa aldeia, nos anos 60? Sabíamos que o Feyenoord se recusou a jogar no estádio da Luz, para a taça dos campeões Europeus, porque o estádio estava decorado com publicidade ao "Café de Angola", tendo a UEFA mandado tapá-lo para que o jogo se realizasse? Sabíamos a quantidade de desertores do exército? Sabiamos que o Niassa levou com bombas para não transportar tropas para combater na guerra colonial? Sabíamos porque se sentava Bob Denard em mesas ao nosso lado, no Arcádia em Luanda, com a mona entrapada? Sabíamos que Sartre se recusou a receber o prémio Nobel? Sabíamos que Chalie Haiden foi posto sob prisão e expulso em 1972 porque no Festival de Jazz de Cascais cantou um hino aos movimentos de libertação? Apercebemo-nos que o Concord em Luanda não colocou a bandeira de Portugal no avião, mas outra?

Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo


Sophia de Mello Breyner Andresen


Fernando Pereira
21/4/2015

17 de abril de 2015

Antropologia da pobreza / Novo Jornal / Ágora / Luanda 18-4-2014




"Estes são os meus princípios, e se vocês não gostarem deles... Bem, tenho outros.” ( Groucho Marx)
Estava preocupado com a crónica que tenho que escrever todas as semanas. Isso acontece-me amiúde, porque às vezes os temas que temos pensado para determinado momento perdem atualidade quando chega a altura de a entregar.
Enquanto andava às voltas vi um artigo sobre os conceitos de gestão social do Banco Mundial que me deixaram perplexo, num momento em que os sacrossantos ditames do mercado condicionam toda a atividade económica e social nos países e na nova ordem de desenvolvimento que se está a impor e aceite de forma passiva por cada vez maior número das pessoas, que são afinal as vítimas maiores de toda esta movimentação.
O Banco Mundial estabelece, em 1996, uma doutrina à volta do conceito de gestão social cujas linhas gerais foram plasmadas.em 2001, num documento intitulado “From Safety Net to Springboard”.Nela desenvolve-se uma extraordinária antropologia da pobreza.
Vejamos então o que diz o supra citado documento:”Como temem cair na miséria e não poder sobreviver, os pobres não querem correr riscos e tem dúvidas em lançarem-se para actividades de maior risco mas que são também mais lucrativas.Em consequência não estão sómente em situação de não aproveitar as oportunidades que lhe são oferecidas pelo processo de globalização como estão mais expostos aos riscos acrescentados que muito provavelmente derivam desta.Como não podem correr riscos e levar a cabo actividades productivas mais rentáveis, é muito provável que não possam assim como os seus filhos sair da pobreza.É por isso que a melhoria da sua capacidade de gestão do risco é um potente meio de reduzir a pobreza de forma duradoura”Mais adiante refere-se que “a experiência dos países da OCDE mostra que a protecção contra o risco por parte de um Estado do Bem estar Social reduz o espírito empreendedor” .
"Quem tem muito dinheiro, por mais inepto que seja, tem talentos e préstimo para tudo; quem o não tem, por mais talentos que tenha, não presta para nada."
Padre António Vieira
Conclusão lógica: se querem prosperar assumam riscos seus mandriões.
Jorge de Sena sobre os portugueses disse algo que se adapta na perfeição aos angolanos: ”O nosso mal, entre nós, não é sabermos pouco; é estarmos todos convencidos de que sabemos muito. Não é sermos pouco inteligentes; é andarmos convencidos que o somos muito.”
Engenheiro civil e escritor de fim-de-semana, primeiro, depois no exílio voluntário, professor na área das humanidades e escritor a tempo inteiro. Como tantos outros, recusou viver numa sacristia de 92.391 Km2. Abdicou de viver numa pátria povoada de sombrios contentinhos suficientemente «reacionários» e suficientemente «dos nossos». Partiu com apoquentação de não poder pensar e dizer livremente. Lecionou, escreveu muito, imenso e fabulosamente. Viveu nos Estados Unidos até à sua morte em 1978.
Homem atento, conheceu e pensou maduramente os americanos. Aqui vai um poema lucidamente recidivo.

Ray Charles

Cego e negro, quem mais americano?
Com drogas, mulheres e pederastas,
a esposa e os filhos, rouco e gutural,
canta em grasnidos suaves pelo mundo
a doce escravidão do dólar e da vida.

Na voz, há sangue de presidentes assassinados,
as bofetadas e o chicote, os desembarques
de «marines» na China ou no Caribe, a Aliança
para o Progresso da Coreia e do Viet-Nam,
e o plasma sanguíneo com etiquetas de blak e white
por causa das confusões.
E há as Filhas da Liberdade, todas virgens e córneas,
de lunetas. E o assalto ao México e às Filipinas,
e a mística do povo eleito por Jeová e por Calvino
para instituir o Fundo Monetário dos brancos e dos louros,
a cadeira eléctrica, e a câmara de gás. Será que ele sabe?

Os corais melosos e castrados titirilam contracantos
ao canto que ele canta em sábias agonias
aprendidas pelos avós ao peso do algodão.
É cego como todos os que cegaram nas notícias da United Press,
nos programas de televisão, nos filmes de Holywood,
nos discursos dos políticos cheirando a Aqua Velva e a petróleo,
nos relatórios das comissões parlamentares de inquérito,
e da CIA, do FBI, ou da polícia de Dallas.
E é negro por fora como isso por dentro.

Cego e negro, uivando ricamente
(enquanto as cidades ardem e os «snipers» crepitam»
sob a chuva de dólares e drogas
as dores da vida ao som da bateria,
quem mais americano?

Jorge de Sena
1964


Fernando Pereira
13/4/2014

9 de abril de 2015

Água de pouca dura / Ágora / Novo Jornal / Luanda 10-4-2015






Um historiador inglês, Nigel Cliff, num livro recentemente traduzido para português com o título “Guerra Santa”, assenta toda a investigação na viagem de Vasco da Gama (um dos estatuados justamente forçados da fortaleza de S. Miguel) para justificar como foram financiadas, programadas e executadas todas as viagens dos navegadores portugueses pelos mares, que depois se soube já antes terem sido navegados por outros.
Este livro é polémico, e só não assumiu foros de maior discussão porque tentou limitá-la a meios muito reservados. Nigel Cliff fez uma análise do que foram as motivações guerreiras dos Europeus em determinadas fases da sua história contra os “infiéis”, e fundamentalmente o papel de determinada burguesia, com uma clara presença judaica, na busca de novos mercados e na procura de matérias-primas mais baratas num mundo dominado pelos mercadores descristianizados. O Cristianismo passou a ser o aparelho ideológico adequado à expansão de novos donos que puseram novos tronos noutros lugares.
Paulo Dias de Novais, fundador da cidade de Luanda, achou que a baía era perfeita para que os barcos se abrigassem de perigos vários. Ao tempo, tinha que se preocupar mais com a rendabilidade dos seus proventos, do que saber se o lugar insalubre onde se fortificava teria água ao longo dos séculos. Novais precisava de produtos tangíveis de algum valor que justificasse que aquele lugar fosse perfeito para trocas de/e com gente.
As cacimbas iam resolvendo mal as necessidades de quem morava e de quem transitava por Luanda até ao início do século XVII. Na ocupação holandesa, os flamengos, em 1645, projetaram uma obra de engenharia, grandiosa para o tempo, que consistia na abertura de um canal abastecedor do Kuanza à capital. Ficaram as boas intenções, embora seja meu entendimento, sem qualquer justificação de caracter técnico, que seria útil fazer do Kuanza uma alternativa ao Bengo, principalmente para abastecimento da cidade que irá crescer em torno do novo aeroporto e nas centralidades de Viana e Luanda sul.
Salvador Correia de Sá mandou construir a cacimba da Maianga, hoje desaparecida no início da subida da avenida do aeroporto, aproveitando a água da vizinha Lagoa dos elefantes, que se alargava até à rua da Samba. Em 1666 o governo central outorgou a Tristão da Cunha (tem direito a nome num largo no centro da cidade da Luanda de hoje) a tarefa de que “velasse pelo concerto da lagôa dos Elefantes”.
O problema de água em Luanda tem barbas, como sói dizer-se, e lá surgiam de vez em quando projetos para trazer águas do Zenza, um afluente da margem esquerda do Bengo, do Lucala, afluente da margem direita do Kuanza e do próprio rio Kuanza, recorrentemente lembrado para ajudar a “matar a sede à cidade”. O poço da Maianga revelava-se com cada vez mais problemas, quer pela insuficiente quantidade de água, quer pela falta de qualidade, “salitrozo e aleitado” potenciador de epidemias.
O governador D. António de Vasconcelos (acho que este não tem direito a permanecer na toponímia da cidade) resolveu fazer estudos para recuperar o plano dos holandeses, e pediu ao Rio de Janeiro um engenheiro. Mandaram-lhe um indivíduo que teria deixado os jesuítas para se dedicar de alma, coração e dinheiro ao projeto. A verdade é que o tempo passava, o dinheiro ia-se gastando e não havia nada de conclusivo. O governador não viu nada feito, e acabou por pagar parte dos trabalhos do seu próprio bolso “por não gravar a Fazenda Real”.
O governador Sousa Coutinho mandou fazer cisternas na fortaleza de S. Miguel e na do Penedo, hoje em ruínas, mas o resultado ficou longe do objetivo.
“Luanda dessas épocas era uma terra de febres malsãs, de disenterias, de surtos epidémicos, uma terra de sede e de doenças, para as quais, por certo, contribuía a minguada e lodosa água das suas fundas cacimbas…”
Em 1813, José de Oliveira Barbosa voltou a entusiasmar-se com o canal do Kuanza, e conseguiu contagiar o Senado da Câmara e o próprio Regente do Reino de Portugal D. João VI. O local era no Calumbo, o que permitiria que chegasse à Maianga por gravidade. Esse entusiasmo deu algum resultado e as obras ainda começaram, mas Luis da Mota Fêo, o substituto de JOB, mandou-as parar pois as finanças da província estavam exauridas perante tão ciclópico empreendimento.
Em 1816 decidiu a Câmara, de acordo com o governador, parar as obras do canal e a cidade continuou a “ sofrer sedes, moléstias e sofrimentos, porque faltava a água…”
Em 1845, na zona dos Coqueiros, abre-se uma nova cacimba por ordem do governador Lourenço Possolo, que é entregue à Câmara, mas nada é minorado e, para além da míngua do líquido, o lixo e os detritos vão-se amontoando. Luanda é uma nitreira a céu aberto. Decide-se adjudicar o transporte de água por barcaças do Bengo, o que se passa a fazer em 1852. Simultaneamente as cacimbas tinham que ser limpas e desentupidas porque apareciam frequentemente mortos lá dentro.
Em 2 de Março de 1889 foi inaugurada, com toda a solenidade, pelo governador-geral Guilherme Brito Capelo (estava na toponímia da cidade até à independência e foi substituído por Kwame Nkrumah) a ligação de água corrente à capital com a captação feita no rio Bengo.
“Ao cabo de 300 anos de sedes, de tormentos e privações, Luanda podia agora beber à vontade, podia banhar-se regaladamente, podia lavar-se, podia, com satisfação, pôr de lado as salitrozas e aleitadas águas dos seus poços e cacimbas”.
Pelos vistos foi “água de pouca dura”, porque o deficiente abastecimento de água à cidade voltou em força na segunda metade dos anos sessenta, no período colonial, e continua a ser um problema mais que recorrente nos dias de hoje.
Fernando Pereira
4/4/2015

1 de abril de 2015

Seripipi de Benguela / Ágora /Novo Jornal / Luanda 2/4/2015


“(…)
leva no bico uma esperança
ao ninho do teu irmão.”


Ernesto Lara Filho


O fogo consumiu totalmente na passada semana um dos emblemáticos edifícios da cidade de Benguela, o “Cabo Submarino”!
Era um edifício com características “sui generis”, pois foi construído para que, no seu interior, se trabalhasse com todo o conforto, num tempo em que o ar condicionado nem sequer era uma miragem.
Conheci bem o local que albergou durante anos a direção provincial de cultura, e sempre me fascinou o ar temperado, numa construção situada no meio de um terreno sem arborização envolvente e numa cidade onde a canícula aperta em períodos continuados do ano.
O edifício, recuperado em 2001 e 2010, manteve, no essencial, a sua estrutura de 1889, com as janelas em lamelas de madeira. Este processo justificava-se no sentido de permitir, durante o dia, o seu manuseamento, tentando amenizar o calor no interior. Esta circulação permanente de ar, era ajudada pelo facto de se tratar de uma estrutura em madeira e ferro, assente em paliçadas. Era um edifício interessantíssimo e, se na primeira metade do século XX o “gémeo” do Namibe (Moçâmedes) foi demolido, este mantinha-se indiferente à voragem avassaladora do pato-bravismo "construtivo" que tem percorrido as cidades de Angola, principalmente as de maior atividade económica.
O edifício foi montado para a West African Telegraph Company, que era uma empresa subsidiária de uma Eastern & Company Telegraph, que no fim da Conferência de Berlim tinha todo o mundo coberto por uma rede de cabo submarino. Em Angola, a ligação entre Cape Town e Moçâmedes prosseguiu para Benguela, daí para Luanda, acabando por se unir ao cabo-submarino que vinha do Brasil para a Europa via S. Vicente em Cabo Verde.
Depois do cabo submarino, no tempo colonial, funcionou lá o Colégio Alemão e hoje restam as cinzas de mais um desastre, este sem anúncio, no pobre património edificado e classificado que há no País.
Ouvi as justificações mais pueris, e uma das mais risíveis foi a de que a culpa do incêndio teria sido da intensa chuva que desabou em Benguela nessa noite. Não quero estabelecer um nexo de causalidade quanto ao que futuramente se irá por lá construir, mas espero que, pelo menos , se reabram os dossiers sobre a recuperação do edifício e se averigue se terão sido cumpridas todas as regras inerentes à preservação de um imóvel com a provecta idade de 125 anos. Era uma excelente oportunidade de casar a culpa com alguém!
Benguela é fundada em 1617 em homenagem a Filipe II de Espanha (1º de Portugal), daí o seu patrono ser S. Filipe, numa clara tentativa por parte de Cerveira Pereira de ficar nas boas graças da corte. “A Sul, o sombreiro” de Pepetela, descreve com autenticidade e minúcia essa personagem malevolamente controversa no século XVI da colónia.
As suas gentes não têm nada a ver com as patifarias do seu fundador, nem com as maledicências em torno do seu santo padroeiro, que só tem uma importância acrescida pois está ligado a um dos reis de Espanha que teve um poder quase absoluto na Europa.
Numa atitude ousada, a população de Benguela manifestou-se contra a travessia do caminho-de-ferro pela cidade, já que a dividiria ao meio, pois a estrutura central da povoação era afastada da linha de costa e do seu porto. Foi assim que nasceu o Lobito para albergar o porto de mar que apoiaria Benguela e, na realidade, esta decisão acabou por atrofiar a cidade no seu crescimento e desenvolvimento económico em detrimento do que em tempos recuados foi a “Catumbela das ostras”!
Benguela foi sempre uma cidade de gente muito ciosa na sua relação interpessoal, de partilha entre quintais e com uma interessante atividade cultural. Durante o colonialismo foi o local privilegiado de intervenção política, e onde terão germinado algumas sociedades maçónicas que acabaram por ser dissolvidas pela repressão das autoridades.
Henrique Galvão, adversário de Salazar, mas com uma verve colonialista, entre 1930-1940 faz esta descrição de Benguela: “… é uma cidade enorme, de ruas compridíssimas e asfixiantes, em que dominam o amarelo e o pardo, feia, muito feia, mas depois de Luanda a cidade mais característica de Angola (…)O mar bate-lhe nas costas, é certo, mas ela fugiu do mar para terras nuas e encardidas (…). Dentro deste quadro, de aspeto doentio e abafante, vive uma população teimosa e tão simpaticamente aferrada à cidade, que constitui o caso mais típico e ferrenho de bairrismo que se conhece em Angola. A gente de Benguela faz lembrar a gente do Porto”( Álbum Comemorativo da 1ª Exposição Colonial Portuguesa / 1934).
O arquiteto Fernando Batalha, recentemente falecido, escrevia sobre Benguela: “Tem o seu assento em uma terra plana e está traçada em quadra”. “Foi o primeiro plano urbanístico de Benguela e provavelmente também o primeiro que se traçou para qualquer povoação de Angola (…) A formação «em quadra» ou traçado ortogonal é também um dos caracteres comuns e de uso frequente nas povoações criadas depois do seculo XVI. Foi o sistema adotado na “Baixa” de Lisboa depois do terramoto e em muitas povoações do Brasil”, FB, “A urbanização de Angola”, Edição Museu de Angola, Luanda 1960.
Resta mesmo a poesia imorredoira de Aires de Almeida Santos: “Meu amor da Rua Onze/ Meu amor da Rua Onze/ Já não quero/ Mais mentir.”

Fernando Pereira
30/3/2015
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