30 de dezembro de 2009

Opinião/ Dez anos que não mudaram o mundo/ Luanda/ Novo Jornal 30-12-09




Dez anos que não mudaram o mundo.

Longe vai o ano de 1845, em que o jovem Karl Marx, escrevia as 11 teses de Feuerbach, e que a décima primeira dizia: “Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo.”
Foi o preambulo teórico de todo um processo de lutas, e mudanças sociais, económicas e políticas, ao longo de todo século XX.
Estes primeiros dez anos, foram a acrimónia dos últimos anos do século transacto. Tem sido feito, com algum sucesso aliás, um esforço continuado em obliterar ideologias que prevaleceram dominantes no mundo no século passado, e que por razões ainda não suficientemente estudadas cientificamente, tem sido guilhotinas, para se saber as devidas causas. O seu lugar foi ocupado pelo liberalismo que se esperava, pois a realidade é que esta primeira década de um milénio que se augurava promissor, transformou-se num mundo onde a globalização (antes chamada de imperialismo), a selvajaria de novos métodos de velhos sistemas económicas, levaram à descrença a maior parte da população mundial, que entusiasmadamente aplaudiu a mudança.
No campo da tecnologia, houve avanços significativos e as pessoas passaram a estar mais próximas para saberem mais dos outros, com cada uma cada vez maior desigualdade na distribuição da riqueza. Este século, e esta crescente sociedade da informação, dá a possibilidade das pessoas saberem que trabalham arduamente, mas o seu magro salário, ou a dignidade da sua vida é concebida pelos ditames de uns números que giram a grande velocidade numa Wall Street (uma rua em Nova York do tamanho da R. dos Mercadores), de um Nikei em Tókio ou um Dax em Frankfurt, onde muitos milhares de pessoas, enxameiam espaços a vender e a comprar papéis de coisas, que outros realmente produzem em circunstâncias social e materialmente degradantes.
Numa década em que os conflitos étnicos, tribais, fronteiriços e religiosos se multiplicaram e desenvolveram com uma violência inimaginável há uns anos, o que assistimos é a derrota dos que apregoavam, que os países do leste europeu eram a cabeça da hidra do “Eixo do Mal”. A realidade é que a desagregação da ex-URSS mostrou as fragilidades da sua economia, e a sua inépcia em preservar o ambiente, mas também mostrou um sistema que deu quadros mais capacitados e desenvoltos, mesmo para competirem nos mercados tecnologicamente exigentes do centro da Europa, para dar um pequeno exemplo.
A Liberdade é um valor sagrado em qualquer modelo de sociedade, mas a realidade é que com a falta de discussão ideológica, em torno da posse dos meios de produção, do lucro e do seu uso, e dos direitos dos cidadãos, permite que as religiões monoteístas, e as poderosas instituições que as regulam hierárquica e economicamente, tentem ocupar esse lugar, não olhando a meios, e nalguns casos usando torpes razões para fazer valer a sua implantação no terreno.
Acabámos a década com o aparecimento de potências emergentes, mas simultaneamente, os dados dos organismos das Nações Unidas dão 900.000.000 de pessoas a sobreviverem na indigência e na pobreza extrema.
Conceitos de solidariedade, de desenvolvimento sustentado, de remuneração justa, de trabalho digno, de combate continuado à doença e um acesso à educação, são “retóricas”, que já nem no domínio do léxico político se consegue vislumbrar.
Tudo hoje é mais rápido, porque há redes sociais, computadores, meios de transporte mais velozes e cómodos, antenas parabólicas, radares, telemóveis, uma miríade de coisas que nos apareceram esta década, e que vão transformando quem ainda “valoriza outras coisas” em verdadeiros “botas-de-elástico”.
A realidade é que houve uma crise na economia mundial, talvez parecida com a de 1929, tão bem tratada pelos “Tempos Modernos” do talentoso Charlie Chaplin, porque apesar de nos darem a ver muita coisa, há também a arte de esconder outra, e por vezes o essencial. Oitenta anos depois, tudo tão diferente, e ao mesmo tempo tão igual.
No mundo inteiro vai prevalecendo o princípio, que a terra é dos nossos antepassados, e que a teremos que usar e entregá-la aos nossos filhos em condições. Os Índios, os que escaparam, têm uma teoria diferente: a terra é dos nossos filhos, nós é que a pedimos emprestada, pelo que temos que cuidar dela com redobrado cuidado porque não é nossa.
O fim de década não podia ficar marcado por pior espectáculo, como o que se assistiu em Copenhaga, ou talvez tivesse sido o epílogo de uma década que deixa poucas saudades. A posição de alguns países, nomeadamente dos EUA, foi no mínimo hipócrita, pois disseram pura e simplesmente: Poluímos enquanto quisermos, e se há países que se sentem lesados com a poluição, pagamos! Um conjunto de países ouviu falar de dinheiro, quis lá saber do ambiente, do aquecimento, do futuro, e logo se colocaram naquela posição dúbia de não discutirem o que era em termos ambientais importante, mas quanto poderiam receber para que tudo continue na mesma e a degradação continue até à irreversibilidade!
Sou um pessimista, mas salvaguardo que um pessimista é um optimista com experiencia!
Que venha outra década, que esta já a ficámos a conhecer!

Fernando Pereira
28/12/09

Tchiweka / Ágora / Novo Jornal/ Luanda 30-12-09



Tchiweka

“Há homens que lutam um dia, e são bons;
Há outros que lutam um ano, e são melhores;
Há aqueles que lutam muitos anos, e são muito bons;
Porém há os que lutam toda a vida
Estes são os imprescindíveis”
Bertold Brecht

Fui presenteado, por um bom amigo, com o livro “Lúcio Lara, imagens de um percurso”, editado pela “Associação Tchiweka de documentação”.
Este livro, graficamente excelente, é a fotobiografia do homem que trilhou toda a luta de libertação de Angola, do seu nascimento enquanto País, e a sua tumultuosa existência nestes quase trinta e cinco anos de independência.
Há uns tempos, passei a pé na casa branca, a 124, da Rua Comandante Stona, e reparei que era a única casa de Luanda que tinha visto sem grades, sem arame farpado, sem segurança sentado numa cadeira à porta, sem muros altos e com o jardim cuidadosamente arranjado. Comentei esse facto com alguns amigos, e realmente foi generalizada a opinião que essa situação era imposta pelo respeito, só possível pela probidade e estatura moral do proprietário da casa: Lúcio Lara.
Lúcio Lara dedicou toda a sua vida à luta pela independência do povo angolano, sacrificando-se, sacrificando a sua família, e nunca nada pediu em troca, rejeitando demasiadas vezes cargos, lugares, em suma todo um conjunto de “prebendas”, que o violentassem no seu carácter de homem impoluto, de grande maturidade ideológica e profundamente arreigado a valores, que se para alguns são dispensáveis, para ele foi a razão de luta de uma vida vivida, dura e materializada nalguns dos seus lídimos objectivos.
Esta fotobiografia, bem como os outros três livros de documentos, já publicados pela ATD, revela uma pessoa de combate, mas também alguém que dava e retribuía com facilidade doses elevadas de afectividade. O MPLA foi a razão da sua vida, ele que é um dos poucos sobreviventes, de um projecto que criou e desenvolveu, onde tantos tem entrado, e que merece do seu País tudo que se deve dar a um dos seus melhores, que são tão poucos..
Lúcio Lara funcionou para mim e para muitos da minha geração, quase que como um alter-ego, com a sua luta continuada pela libertação do País, a defesa obstinada do seu projecto de sociedade igualitária em Angola, o tenaz combate ao racismo e tribalismo, pasto fértil para a penetração de formas de liberalismo niilista, em que o lucro a qualquer preço é o mote da sociedade, e em que o homem passa a mercadoria ou estatística.
Este livro, é provavelmente do melhor que se fez em Angola, nos últimos trinta e cinco anos, e mostra fotos de paixão, de amizades perpetuadas, de reuniões aturadas, de situações complicadas, de momentos de tensão, de permanente trabalho político, de cumplicidades forjadas em propósitos comuns de afirmação de vontades de transformação de sociedade, enfim mostra o trajecto dos quase cinquenta e cinco anos do MPLA, que só tem um denominador comum: Lúcio Lara.
O livro abre a sua casa, mostra a sua dedicada família, expõe a simplicidade dos seus hábitos e partilha com todos o que gosta de fazer, os seus amigos, e os anos vividos com a sua companheira Ruth, falecida em 2000, e que seguramente foi um enorme choque, tal a cumplicidade de quase cinquenta anos de vida em comum, e de partilha de ideias, sentimentos e convicções.
Este livro é o verdadeiro livro de Angola, obrigatório para todas as gerações, principalmente para a juventude, para perceberem se o que hoje é fácil ou facilitado., foi feito com luta por pessoas imprescindíveis, e que felizmente ainda vivem entre nós.
Lúcio Lara, agradecemos-te porque não deitaste os papéis fora, e teres sido sempre um rato de papeis! Talvez assim se tivesse evitado, que em Angola, ou noutro lugar, se escrevesse ou reescrevesse a história segundo as conveniências do mercado e das circunstâncias adaptadas a determinados momentos.
Á Associação Tchiweka de Documentação, saúdo o mérito de todo o trabalho que aí está ao alcance de todos os angolanos, sem peias nem meias!

Fernando Pereira
24/12/09

23 de dezembro de 2009

Engenheiros de Almas? / Ágora/ Novo Jornal/ Luanda/ 23/12/09




Estamos nataliando, e esperava-se provavelmente uma crónica à volta de renas, pais natais, presépios, cabazes, doçarias, bacalhaus e outras vitualhas, adaptadas às circunstâncias do desenvolvimento e inerente envolvimento!
Hoje o tema é sobre uma situação que trouxe em polvorosa algumas pessoas, meios políticos e culturais do País, por João de Melo, ter vencido o prémio de Literatura e Artes atribuído pelo Ministério da Cultura em 2009.
Quero fazer desde já uma declaração prévia de interesses: Sou amigo de João de Melo. Foi meu colega de turma vários anos no Salvador Correia, percorremos juntos locais de Coimbra enquanto estudantes, fui seu colaborador regular no “Correio da Semana”, sou admirador da sua obra literária, e acompanho com entusiasmo qualquer projecto onde participe, pois habituei-me a dimensionar a o seu civismo impoluto.
Acho que João de Melo há muito que merecia este prémio, e não o digo por simpatia, mas porque acho que é um dos escritores angolanos com obra solidificada e com leitores fiéis, sem ter procurado colocar-se em bicos de pés, ou na busca quase doentia de protagonismo a qualquer preço, para se promover, como há exemplos suficientes na escrita doméstica e exportada.
João de Melo, foi sempre uma pessoa discreta, simultaneamente sagaz e hábil na construção das palavras assertivas, num espaço de intervenção política que sempre foi seu, geneticamente herdado, e militantemente afirmado. Nunca foi pessoa a quem se pedissem meias-palavras, penumbras lógicas e matizes indecisas. Foi deputado pelo seu MPLA de sempre, e se hoje faz parte dos quatro milhões de militantes (?), houve momentos em que ele era militante e à sua volta estavam apenas quatro múltiplos de cem, depois 4 múltiplos de mil e por aí fora, até não termos uma praça em lado nenhum para juntar tanto militante, tanta divergência ideológica, política, religiosa, económica e étnica num quadro muito difuso de “socialismo democrático”, ou “partido de esquerda”, matrizes tão enfatizadas recentemente no VI Congresso do MPLA.
Viriato da Cruz merece este prémio, mas antes disso merecia que não fosse tão ostracizado da memória colectiva dos angolanos, e do próprio MPLA, movimento que fundou e liderou.
Não conheci Viriato da Cruz, e sempre que tentei saber algo sobre ele, vi barreiras demais, o que ainda aumentava o número de interrogações. O que conheci primeiro dele, foram os seus poemas, e acho que ele há-de vir a ser Prémio Nacional de Literatura e Artes, mas tenho a convicção que primeiro é necessária uma catarse, para que Viriato da Cruz não continue a ser ignorado pelos angolanos, e que o seu papel na história de Angola e da sua libertação seja relevado da forma solene, com dignidade, e que Angola se obrigue a olhar para as pessoas que lutaram e acreditaram nela como País, de uma forma reverente.
Em síntese, é indiscutível o merecimento de João de Melo pelo prémio, como é indiscutível que é urgente dignificar Viriato da Cruz, independentemente de percursos descontinuados em determinadas circunstancias.
Angola necessita pouco de “Engenheiros de Almas”, como Estaline chamava aos intelectuais e jornalistas em 1936, e este episódio da atribuição do prémio, ainda vai deixando pairar que não terão findado alguns tiques de ortodoxia dispensável, pelo menos nestes casos. Acabou por ser levado para um campo falacioso, e só algum bom senso manteve a dignidade do prémio, premiados e júri, que mereciam pouco esta exposição pública, pelo menos da forma como aconteceu.
Quis comparar-se, e mal, diga-se de passagem, a atribuição do prémio Camões, e recusado por Luandino Vieira. As razões aduzidas não tinham comparação nenhuma com este caso, e se querem manter o argumento, não deixem de se lembrar que quando Luandino recusou, o prémio foi entregue ao extraordinário Luis Miguel Cintra, um dos melhores actores do teatro e cinema português, encenador emérito e fundador em 1973 do Teatro da Cornucópia. Pode-se dizer que um ao recusar e o outro ao aceitar, equivaleram-se em prestígio, pois são ambos excelentes, e nenhum deles perdeu as qualidades com que foram distinguidos.
Um bom “Dia da Família” para quem vai tendo paciência de me ler.
Fernando Pereira
15/12/09

19 de dezembro de 2009

Capacete obrigatório/ Ágora/ Novo Jornal/ Luanda/ 18-12-09



O Novo Jornal faz o brilharete de 100 números. Esta coluna está pertinho de o fazer, por isso vão preparando os V. encómios (Narcisista q.b.).
Findou o VI Congresso do MPLA, e do que fui acompanhando, ressaltou que os Congressos do MPLA, já não se efectuam na Av. do 1º Congresso, o que é um claro distanciamento, onde pela primeira vez se fez um Congresso do MPLA de 4 a 10 de Dezembro de 1977.
Admito que há aspectos hitchkokianos neste congresso, pois o 47º elemento do Bureau Político do MPLA, permanece em suspenso e muito a propósito levante-se o véu, porque é um elemento feminino.
Para além do Congresso, começa a debandada dos expatriados para a Europa, não querendo partilhar a panóplia de cabazes disponibilizados pelo comércio a retalho e grossista do País.
Sou suspeito, porque realmente sempre gostei mais de “Dia da Família” do que do “ Natal”, e quando vejo os eventos que emolduram a festa que se aproxima, só me vou lembrando que também vai sobrar para mim, num primado para o fígado de “que resistir é vencer”!O escritor Baptista Bastos, quando vê alguém permanentemente ruborescido, tem uma tirada com imensa piada: “O meu amigo não engana ninguém, tem o seu fígado no nariz”!
Já que se fala em cabazes, longe vão os tempos em que as latas de sardinha em conserva, não eram especialidades de lojas “gourmet”, nem havia tanto “especialista” em vinhos, fumados e destilados, e em que os rebuçados se colavam invariavelmente ao celofane. Podíamos dizer que, um dos símbolos do colonialismo português era o bacalhau, que mantém a tradição nas novas gerações de angolanos, como a herança saborosa de um período cada vez mais esquecido da história. Aqui cabe referir que o bacalhau português é inigualável pois há povos, como os britânicos que o comem fresco, frito e sem azeite!
Mas o verdadeiro ex-libris do sistema colonial português, era o “capacete”, que era um garrafão de cinco ou dez litros, com o gargalo envolto numa camada de gesso, que era um certificado duvidoso de inviolabilidade, de vinho do Dão ou do Cartaxo, pois nesses tempos nem Douro nem Alentejo, e as mixórdias de vinho verde Lagosta, Casal Garcia e Gatão o máximo que conseguiam era dar uma enxaqueca terrível!
Macieira 5 Estrelas, vinhos doces abafados, aguardente “Paraíso”,a “D´uvas Portuguesas da casa” da casa Abel Pereira da Fonseca. Essa casa vinícola, já desaparecida, depois de um efémero reinado do vinho “Mosteiro”, proveniente do Brasil no fim dos anos 70, apareceu com um “Sanguinhal”, que convenhamos era para efeitos de uma cirrose, bem mais brando, do que o temível “Morteiro”,como era conhecido no léxico dos que a ele tinham direito e que tanta história deixou na cidade durante um determinado período entre o 1º Congresso do MPLA, e o 1ªCongresso Extraordinário do MPLA em 1980.
Recuando à década de 50, lembro-me de ouvir falar de um tal Porfírio Martins, um mágico perfeccionista na arte de baptizar o vinho.
Em altas horas da noite, o Porfírio escolhia dez barris mais cheios, perceptível com o chocalhar, depois de os deitar. Com uma chave de fenda, retirava o selo metálico que protegia o batoque, ou seja, a rolha que tapava o orifício por onde era introduzido o vinho, batendo em círculo com um martelo e um pano, até o batoque saltar e não ficar nenhuma réstia de que houvera violação prévia; Dois litros de álcool puro e oito litros de água trocava-se por igual “litrada” de vinho, já de si de discutível qualidade. Era o melhor de todos, e se houvesse seriedade na atribuição de licença profissional, ele seria um mixordeiro de 1ª classe. Não passou de um mediano “fubeiro”!
Um caso bem demonstrativo, em que a escassez de oportunidades impedem grandes voos!

Fernando Pereira
13/12/09

4 de dezembro de 2009

“E o canto do não, dobrou!”/ Ágora/ Novo Jornal / Luanda 4-12-09




Primeiro levaram os negros/ Mas não me importei com isso/ Eu não era negro. / Em seguida levaram alguns operários/Mas não me importei com isso/ Eu também não era operário./ Depois prenderam os miseráveis/ Mas não me importei com isso / Porque eu não sou miserável. / Depois agarraram uns desempregados/ Mas como tenho o meu emprego/ Também não me importei. / Agora estão-me levando / Mas já é tarde/ Como eu não me importei com ninguém / Ninguém se importa comigo.
Bertold Brecht (1898-1956)

Comecei esta crónica com um poema de uma das poucas referências que trouxe da “idade da razão” e que vou mantendo, quase como espólio, nestes anos que preenchem a “razão da idade”.
Guardei sempre de Brecht alguns versos para ilustrar situações e esta “Do rio que tudo arrasta/ Se diz que é violento. / Mas ninguém diz violentas/ As margens que o comprimem.” tem sido a recorrentemente utilizada nas mais variadas ocasiões e, pelos vistos, tem que ser mais lembrada que o cartão de débito ou crédito.
Não vou falar de Brecht, porque, de certa forma, sou demasiado “possessivo” para o partilhar, mas vou dar um pouco de ruído a gente aparentemente silenciada.
Daniel Filipe (1925-1964) foi um dos poetas cabo-verdianos de pouca obra mas profícua e importante para muitos da minha geração. A sua “Invenção do amor” era para muitos de nós “um cartão/ que o amigo maninho tipografou/ por ti sofre o meu coração/ num canto ‘sim’/ noutro canto 'não'/, como estava no “Namoro” de Viriato da Cruz. Era o livro que dávamos a alguém, esperando receber o seu amor em troca ou, não sendo possível, pelo menos uma atençãozinha de “sua parte”. Ainda hoje tenho um que me devolveram e ainda bem porque já não se encontra à venda em lado nenhum. Há um disco de Mário Viegas, reeditado recentemente em CD, notável pela força do poema, reforçado pela declamação virtuosa e talentosa do actor. Combatente da ditadura salazarista, anti-colonialista, Daniel Filipe foi cedo para Portugal onde estudou. Preso e torturado pela PIDE, regressa a Cabo Verde onde dirige jornais, morre precocemente, ignorado e esquecido por todos. “Pátria, Lugar de Exílio” é outra das suas obras poéticas de tomo que, de certa forma, me faz lembrar muito dos poemas de outro “espoliado de pátria”, Jorge de Sena.
Houve um homem em Luanda que, entre muita coisa, me falava e que me fez falta ouvir mais, e que me deu a conhecer Daniel Filipe: Felisberto Lemos.
Esse infatigável lutador anti-fascista, divulgador cultural na sociedade colonial, a quem Manuel Alegre chamou o “Livreiro da esperança” foi, durante décadas, até à sua saída em 1977, o homem a quem todos recorriam para terem o livro que a censura e o poder colonial proibiam, num verdadeiro opróbrio à seriedade e à discussão liberta e tolerante das ideias.
Foi para Angola depois de ter sido expulso da Coimbra Editora por motivos políticos e é na Lello, em Luanda, que é acolhido, onde mantém viva uma tertúlia e permanece fiel aos seus princípios, com uma coluna vertebral direita, não se sujeitando à mediocridade, resistindo à quietude moral e desafiando a mentalidade medíocre e passiva.
Regressa a Coimbra, depois de expulso de Angola, em circunstâncias nunca esclarecidas, acolhido inicialmente na Atlântida, transferindo-se para a livraria do “Jornal” apoiado por Beça Murias, José Carlos Vasconcelos e o malogrado Fernando Assis Pacheco e, já no fim da sua vida, pela amizade de Joaquim Machado na Novalmedina. O Felisberto da Lello nunca se queixou de nada, nem de ninguém, assumindo sempre Angola com o respeito que não vejo em muitos angolanos com responsabilidades. Foi confrangedora a forma como Felisberto viveu os seus últimos anos, com a saúde a deteriorar-se e sem recursos que lhe valessem. Quando morreu, foi a consternação generalizada porque foi um homem de grande carácter que desapareceu e que ajudou muitos a formarem as suas convicções e a lutar por elas, dentro do primado da liberdade, da democracia e de uma sociedade mais igualitária.
Brecht, Daniel Filipe e Felisberto Lemos eram diferentes em muitas coisas, a poesia e a vida coerente junta-os!
Há homens que são capazes/ de uma flor onde/ as flores não nascem/
Outros abrem velhas portas/ acendem nas praças uma rosa de fogo./
Tu vendes livros quer dizer/ entregas a cada homem/ teu coração dentro de cada livro.
Manuel Alegre, Livreiro da Esperança - a Felisberto Lemos


Fernando Pereira
25/11/09
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